Crimes em tempos de pandemia

Qual a influência do novo coronavírus no Direito Penal? Existem crimes específicos para quem transmite o vírus, aumenta de forma exorbitante os preços de produtos essenciais ou deixa de informar às autoridades os casos de pacientes infectados? Confira neste artigo estas e outras reflexões sobre o tema!

O mundo está passando por um momento muito delicado em razão da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. E esta pandemia reflete diretamente em diversas áreas do Direito, como no Direito Civil, Constitucional, do Consumidor, do Trabalho, Econômico, Financeiro, Tributário, Administrativo e Penal.

Por isso, para gerar reflexões e incutir juízo crítico no operador do Direito, o Supremo fez uma série de vídeos ao vivo em seu perfil no Instagram (@supremotv), disponíveis também em seu canal no YouTube, sobre Coronavírus e o Direito. Seguindo essa mesma linha, artigos sobre o tema também serão publicados aqui no blog.

E, para iniciar essa série, neste artigo será reproduzida a análise dos crimes em tempos de pandemia, discutidos na live feita com os professores Bruno Zampier e Christiano Gonzaga, na sexta-feira, dia 20/03/2020, às 17:00.

Legislação aplicável ao atual momento de pandemia

A pandemia causada pelo coronavírus tem se alastrado e preocupado a todos no mundo inteiro. Mais especificamente no Brasil, entendeu-se necessária a aprovação de lei federal e de diversas portarias para disciplinar o preocupante cenário que se desenha. Essas normas foram citadas na live feita no dia 21/03/2020, às 18:00, com os professores Bruno Zampier e Bernardo Gonçalves. Serão reproduzidas aqui a título de introdução ao tema, mas também estarão presentes no artigo sobre Coronavírus e Direito Constitucional. Vejamos quais são:

1 – Em fevereiro de 2020 foi aprovada a Lei 13.979, que trata das medidas de enfrentamento dessa emergência de saúde pública. Dentre elas estão a quarentena, o isolamento e a determinação de realização compulsória de exames, testes laboratoriais e tratamentos médicos.

2 – Posteriormente, foi editada a Portaria nº 365, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde, regulamentando a Lei 13.979/2020 e trazendo especificações sobre as medidas de segurança nela previstas.

Dois dispositivos muito importantes dessa Portaria são os arts. 4º, §1º, e 5º:

O art. 4º, §1º, dispõe que “A medida de quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação.”.

Já o art. 5º tem a seguinte redação: “O descumprimento das medidas de isolamento e quarentena previstas nesta Portaria acarretará a responsabilização, nos termos previstos em lei”, cabendo ao médico ou agente de vigilância epidemiológica informar à autoridade policial e Ministério Público sobre esse descumprimento (§1º).

3 – Em março foi editada a Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020.

Ela também possui diversos dispositivos importantes:

Logo no início de seu texto, considera-se “que o descumprimento das medidas impostas pelos órgãos públicos com o escopo de evitar a disseminação do coronavírus (COVID-19) podem inserir o agente na prática dos crimes previstos nos artigos 268 e 330 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, de forma permanente, enquanto durar a negativa”.

Seu art. 3º afirma que “O descumprimento das medidas previstas no art. 3ª da Lei nº 13.979, de 2020, acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores.”.

E seu art. 5º determina que “O descumprimento da medida de quarentena, prevista no inciso II do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos arts. 268 e 330 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, se o fato não constituir crime mais grave”.

4 – Por fim, a Portaria nº 454, de 20 de março de 2020, declarou, em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária da Covid-19.

Todas essas normas são de suma importância para o entendimento das reflexões feitas neste artigo. Cada crime será analisado à luz de todo esse contexto legislativo, para que sejam devidamente fundamentados.

Crimes de periclitação da vida e da saúde

Os primeiros crimes tratados na live foram os de periclitação da vida e da saúde, mais especificamente o de perigo de contágio de moléstia grave e o de perigo para a vida ou saúde de outrem, dispostos nos arts. 131 e 132 do Código Penal.

>> Perigo de contágio de moléstia grave

Art. 131 Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Entende-se por moléstia grave toda e qualquer doença capaz de afetar a saúde, o funcionamento do organismo, causar sequelas ou até mesmo a morte da vítima.

A Covid-19 é uma dessas doenças. Afeta seriamente o organismo, causando diversas complicações, tais como problemas respiratórios, e pode ser fatal para as pessoas pertencentes ao chamado grupo de risco (idosos, diabéticos, hipertensos, pessoas com insuficiência cardíaca, renal ou doença respiratória).

Portanto, o ato praticado com a finalidade de transmiti-la pode ser perfeitamente enquadrado nesse tipo penal.

Este é um crime formal. Isso significa que sua consumação ocorre com a mera prática do ato de transmissão, independentemente da produção do resultado naturalístico (efetiva transmissão). Além disso, é um crime de perigo abstrato, não sendo necessário, para sua consumação, que a lesão ao bem jurídico efetivamente ocorra.

Embora a efetiva transmissão não seja necessária à consumação, esse resultado pode ser produzido. Caso isso ocorra, a conduta delituosa do agente passará de perigo de contágio de moléstia grave para lesão corporal (art. 129).

>> Perigo para a vida ou saúde de outrem

Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Esse é um crime de mera atividade, consumando-se com a mera exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo direto e iminente. Além disso, constitui crime de perigo concreto, sendo necessária, para sua consumação, a comprovação de que o perigo realmente existiu.

Levando em consideração que diversos Estados e Municípios já adotaram as medidas de segurança previstas na Lei 13979/2020, suponhamos a seguinte situação: João, infectado pela Covid-19, descumpre a determinação de quarentena e sai à rua. Embora não esteja efetivamente transmitindo a doença a alguém, está expondo a vida e a saúde de outrem a perigo.

O art. 3º da Portaria Interministerial nº 5 prevê que descumprir a quarentena acarreta a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores. Ademais, como já foi decretado o estado de transmissão comunitária da doença pela Portaria nº 454, de 20 de março de 2020, a exposição a perigo pode ocorrer com ainda mais facilidade. Sendo assim, João responderá pelo crime do art. 132. Mas frise-se: a configuração desse crime está condicionada à comprovação de existência do perigo (crime de perigo concreto) e à existência de dolo.

Lesão Corporal

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano.

O crime de lesão corporal é aquele que causa ofensa à integridade corporal ou à saúde da vítima. Ela pode ser leve, grave ou gravíssima, a depender do resultado.

A Covid-19 é uma doença que provoca diversas complicações à saúde. Por isso, conforme comentário ao art. 131, se o contágio efetivamente ocorrer, é possível que se configure a lesão corporal.

Se da contaminação resultar incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias, perigo de vida, debilidade permanente de membro, sentido ou função e aceleração de parto, será considerada grave, punida com reclusão de um a cinco anos (art. 129, §1º). Se resultar incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade incurável, perda ou inutilização do membro, sentido ou função, deformidade permanente ou aborto, será considerada gravíssima, punida com reclusão de dois a oito anos (§2º).

Estelionato

Outro crime de imaginável prática nesse contexto é o de estelionato, art. 171 do Código Penal:

Art. 171Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.

Um exemplo:

Um jovem, ao cruzar com um idoso na rua, vislumbra a possibilidade de lhe aplicar um golpe. Dirige-se até ele e informa que aplica testes de coronavírus em pessoas pertencentes ao grupo de risco. O jovem o convence a lhe transferir uma quantia em dinheiro para fazer o procedimento. E ele ainda usa o argumento de que é importante que aquele idoso saiba de sua condição atual, pois ele pode, inclusive, morrer se estiver infectado e não tomar os cuidados necessários o quanto antes. O idoso, amedrontado e induzido em erro, transfere o dinheiro e o jovem, informando-lhe que vai buscar os equipamentos, nunca mais volta.

Esse é um típico caso de estelionato que pode ocorrer em tempos de pandemia.

Além de o jovem ser punido pelo crime do art. 171, sua pena será aplicada em dobro, pois cometido contra idoso (art. 171, §4º).

>>  Fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro

O estelionato possui uma conduta a ele equiparada, disposta em seu inciso V, que também pode ser cometida nesse período:

Art. 171.

[…]

V – destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro.

Na live, o professor Bruno Zampier deu o seguinte exemplo:

Imaginemos que um jovem profissional dentista faça um seguro contra eventuais doenças que o impeçam de exercer sua profissão por mais de quinze dias. Através desse contrato, em caso de sinistro, o prêmio será pago e ele receberá uma indenização no valor de R$ 50.000,00. Diante do atual cenário, ele vislumbra a possibilidade de contrair a doença propositalmente para receber o referido valor. Por ser jovem e não pertencer ao grupo de risco, a doença não lhe seria fatal. Por isso, burla a seguradora e recebe o dinheiro esperado.

Essa conduta configura o crime de estelionato para recebimento de indenização ou valor de seguro,pois o profissional obtém para si vantagem ilícita, em prejuízo da contratada, induzindo-a em erro, mediante meio fraudulento (lesão ao próprio corpo), com o intuito de haver indenização ou valor de seguro.

>> Estelionato majorado

Ainda na perspectiva do estelionato, os professores imaginaram a seguinte hipótese: em razão da proporção tomada pelo coronavírus no país, o Governo decida incluir a doença como incapacitante, podendo receber benefício previdenciário aquele que a contrair. Se alguém contrai a doença, também propositalmente, apenas para receber o benefício, comete o crime do art. 171, §3º, segundo o qual “A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.”.

Crimes contra a saúde pública

Finalizadas as discussões sobre os crimes praticados contra a pessoa e contra o patrimônio, passa-se à análise das condutas ilícitas que envolvem especificamente a saúde pública. Conforme estudado na live, serão citadas a epidemia, a infração de medida sanitária preventiva e a omissão de notificação de doença, previstas nos arts. 267, 268 e 269 do Código Penal.

>> Epidemia

Art. 267 – Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena – reclusão, de dez a quinze anos.

Conforme dito pelo professor Christiano Gonzaga, esse é um crime cometido a título de dolo. Além disso, contra ele não se pode alegar erro de proibição. Isto é, o agente não pode dizer que não sabia da ilicitude dessa conduta, pois a grave situação atual e a necessidade de permanecer em casa têm sido noticiadas diariamente, inclusive através de Decretos do Poder Público.

>> Infração de medida sanitária preventiva

Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.

Esse é o enquadramentos típico para a situação atual envolvendo a Covid-19, segundo o professor Christiano Gonzaga. Isso porque, com a determinação de isolamento social – que já vem sendo Decretada na maioria dos Estados e Municípios –, cometerá o crime de infração de medida sanitária preventiva aquele que, por exemplo, sair de casa sem justificativa plausível.

Outro fundamento para a caracterização desse fato como crime é o art. 5º da Portaria Interministerial nº 5, mencionado inicialmente, segundo o qual infringir a determinação de quarentena sujeita os infratores à sanção penal do art. 268.

>> Omissão de notificação de doença

Art. 269 – Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

Nas palavras do professor Bruno Zampier, a Covid-19 é um doença de notificação compulsória e imediata. Isso significa que os médicos têm o dever de alimentar os sistemas das Secretarias e do Ministério da Saúde com dados reais de infecção, sob pena de incorrerem na prática do referido crime.

Ressalte-se que este é um crime omissivo próprio, ou seja, dele não cabe tentativa. Sendo assim, se houve a omissão (se o médico deixou de denunciar à autoridade pública a infecção de um paciente pela Covid-19) o delito já se consuma.

Causa de aumento de pena

Por fim, para terminar a análise dos crimes previstos no Código Penal passíveis de cometimento em tempos de coronavírus, passa-se ao estudo do art. 234-A, IV, que apresenta causas de aumento de pena nos crimes contra a dignidade sexual, contra idosos e pessoas com deficiência. Vejamos:

234-ANos crimes previstos neste Título a pena é aumentada:

[…]

IV – de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), se o agente transmite à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador, ou se a vítima é idosa ou pessoa com deficiência.

Aqui, tem-se dois casos: (i) a transmissão do coronavírus por via sexual e (ii) se o vírus foi transmitido, por qualquer meio ou crime, à pessoa idosa ou com deficiência.

Em se tratando da primeira hipótese, a expressão doença sexualmente transmissível não pode ser interpretada restritivamente. Isso porque não se fala, aqui, apenas em DSTs, mas também em outras doenças capazes de serem transmitidas por via sexual.

Os professores fizeram um esclarecimento importante que precisa ser reproduzido: a expressão doença sexualmente transmissível não se confunde com moléstia venérea, presente no art. 130, pois esta última se restringe às doenças oriundas de relações sexuais, não se enquadrando, neste conceito, o coronavírus.

Há quem diga que a Covid-19 não é transmitida pela relação sexual. Por isso, essa causa de aumento de pena não se aplicaria aos crimes sexuais praticados por agentes infectados pelo coronavírus.

Todavia, crimes sexuais não são praticados apenas através da conjunção carnal. É possível que ocorram, por exemplo, através de sexo oral ou até mesmo de um beijo dado contra a vontade da vítima (art. 213). Este último exemplo, inclusive, foi dado pelo professor Bruno Zampier.

Nesse sentido, se o agente, infectado pela doença, cometer crime sexual através dessas práticas, é possível que o vírus seja transmitido de sua boca ou saliva para a vítima. Portanto, esta é uma doença que pode ser, sim, transmitida sexualmente, aplicando-se-lhe a causa de aumento de pena aqui citada.

Analisando a segunda hipótese, caso o agente, infectado pela doença, a transmita para pessoa idosa, também sofrerá os efeitos do aumento de pena, ainda que o crime não seja sexual. E aqui vale uma observação: mostra-se razoável a aplicação desta causa de aumento de pena ao agente que transmite o coronavírus a idosos, pois eles são os mais vulneráveis, fazendo parte do grupo de risco.

Crimes contra a economia popular

Nessa época delicada de pandemia, a mídia tem noticiado com regularidade casos de empresas que elevam os preços de produtos essenciais à prevenção do novo coronavírus, como máscaras e álcool em gel. Essas condutas também são enquadradas como crimes, além de configurarem gravíssima irresponsabilidade social.

A Lei 1.521/1951 dispõe sobre os crimes contra a economia popular e se coaduna perfeitamente com este cenário de abusos contra toda a sociedade.

Seu art. 2º prevê quais são esses crimes e, dentre eles, menciona, em seu inciso V,o seguinte:

Art. 2º. São crimes desta natureza:

[…]

V – transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ou de serviços essenciais, bem como expor à venda ou oferecer ao público ou vender tais gêneros, mercadorias ou serviços, por preço superior ao tabelado, assim como não manter afixadas, em lugar visível e de fácil leitura, as tabelas de preços aprovadas pelos órgãos competentes”.

Máscaras e álcool em gel são, sem dúvidas, produtos de preços tabelados. Mesmo assim, muitos estabelecimentos têm elevado exorbitantemente seus preços, com o intuito de auferir maiores lucros. Essa conduta é ilícita, nos termos do art. 2º da Lei 1.521/51, citado acima.

Este também é um crime de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal. Todavia, o professor Christiano Gonzaga fez uma observação importante: embora seja um crime de competência do Juizado Especial, cabendo, inclusive, suspensão condicional do processo, não significa que é um crime brando. Isso porque, se está na esfera criminal, é porque já passou por outras áreas do Direito, contemplando a regra da ultima ratio.

Conclui-se, portanto, que a pandemia do coronavírus exerce grande influência sobre o Direito Penal e que é necessário obedecer as medidas de prevenção adotadas pelo governo. Além disso, é fundamental que se tenha bom senso na compra e na venda de produtos essenciais. Tudo isso contribuirá para um maior controle de disseminação da doença.

Quer acompanhar os demais vídeos dessa série? Acesse https://www.youtube.com/user/tvsupremo/videos e confira!

Supremo TV

Belo Horizonte, 20 de março de 2020

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