Este artigo é um manifesto contra o gabarito oficial de uma das questões da prova de Criminologia da Defensoria Pública da Bahia, que adotou, como fundamento, doutrina não exigida em edital e pano de fundo que não se mostra totalmente adequado. Continue a leitura e entenda.
Foram aplicadas, nos dias 02 e 03 de outubro, as Provas Discursivas Específicas do concurso para a Defensoria Pública da Bahia, organizado pela banca Fundação Carlos Chagas – FCC.
Ocorre que, para uma das questões da prova de Criminologia, foi adotado um gabarito baseado em doutrina não prevista no edital. Mais do que isso, a correção da questão, que culminou na inabilitação de inúmeros candidatos, apresenta argumentos que, embora pertinentes “para a análise do fenômeno do ‘encarceramento em massa’ em abstrato, representam também o apagamento de um legado de produções na área que percebem ‘raça’ como âncora da seletividade penal brasileira e que precisariam constituir o núcleo essencial do referido gabarito”, conforme aponta a professora Luciana Costa Fernandes.
Nesse sentido, diante da referida situação prejudicial aos candidatos e que, por isso mesmo, não se mostra mais adequada, nós, do Time Supremo, nos manifestamos contra o ocorrido e registramos notas de nossos professores. Ademais, como de costume, reafirmamos nosso compromisso: estaremos com vocês sempre, em todos os momentos, lutando junto, de mãos dadas.
MANIFESTAÇÃO – PROFESSOR FERNANDO ANTUNES SOUBHIA
A primeira lição que estudamos em criminologia é que ela é uma ciência zetética, ou seja, não se firma em dogmas, em premissas inafatastáveis. Ao contrário, na criminologia, as perguntas são mais importantes que as respostas e mesmo quando conseguimos boas respostas, estas não possuem caráter definitivo.
A inclusão de uma questão sobre encarceramento em massa, em especial a exigência de compreensão e análise crítica dos microdados da população prisional é, certamente, uma forma de se avaliar não apenas o conhecimento dos candidatos ao cargo de Defensor e Defensora Pública, mas sua identidade com a Defensoria Pública e sua missão constitucional.
A exigência de uma resposta vinculada ao pensamento de um criminólogo específico, por outro lado, não possui as mesmas virtudes, ainda que esse criminólogo seja o grande Eugenio Raúl Zaffaroni.
O encarceramento em massa e sua seletividade pode ser analisado a partir de diversos filtros, e qualquer resposta que possua pretensão de ser universal, tenderá ao reducionismo e à simplificação de um problema complexo.
Uma das aproximações mais comuns à questão é a da economia política da pena radicada nos escritos de Georg Rusche, Otto Kirchheimer, Dario Melossi, Massimo Pavarini, Alessandro di Giorgi e outros. Mas é importante destacar que, mesmo entre aqueles que ancoram o fortalecimento do aparato punitivo e o encarceramento em massa em elementos econômicos, não existe um consenso, havendo teóricos como Loic Wacquant, que sustentam que se trata de um processo natural à superação do estado de previdência e adoção de políticas neo-liberais, enquanto outros focam em elementos mais pontuais como as alterações na dosimetria de pena e necessidade de maquiagem de dados relativos às taxas de desemprego (Katherine Beckett e Bruce Western) ou poder excessivo dos representantes do Ministério Público e mal uso dos acordos de leniência (John Pfaff).
Em uma outra vertente, que não deixa de possuir elementos tangenciais à aproximação anterior, existem teóricos que apontam a raiz do encarceramento em massa no crescente poder do complexo industrial-penal e seu impacto sobre a privatização do aparato punitivo (Eric Schlosser e, em parte, Angela Davis).
Mais uma outra forma de olhar para o problema é, sem dúvida, uma análise sobre o giro punitivo e o surgimento de uma nova penologia de armazenagem e incapacitação, muitas vezes aprofundada pela adoção de análises atuariais (por todos, cita-se, no Brasil, Maurício Dieter).
Por fim, e ainda sem esgotar o tema, a tese do crescimento do aparato punitivo como mecanismo de preservação das hierarquias raciais estabelecidas em um passado colonial, capitaneada nos EUA por Angela Davis, Michele Alexander e, no Brasil, por Juliana Borges, é, sem dúvida, uma das teses mais importantes para a análise pedida pelo examinador e ela não foi incluída entre os tópicos exigidos para a resposta “ideal”.
A abordagem de Eugenio Raúl Zaffaroni, dada como correta pelo examinador, possui muitos méritos e pontos em comum com algumas das abordagens acima, até mesmo porque o professor argentino edifica suas teorias sobre conceitos já existentes, aprofundando-os ou adaptando as teorias à realidade latino-americana. Seu conceito de adestramento diferencial, cuja inspiração está claramente na obra de Edwin Sutherland, é um elemento interessantíssimo na análise da criminalização da pobreza, mas não é o único.
Aliás, não deixa de ser intrigante o alerta feito pelo examinador de que não serão aceitas explicações genéricas de senso comum nem concepções conspiratórias. O que seria, para o examinador, uma concepção conspiratória? Não falta entre teóricos conservadores aqueles que designem as teorias de raiz marxistas como conspiratórias. Seria isso? Mesmo entre os progressistas, Loic Wacquant, por exemplo, acredita que o encarceramento em massa é resultado de uma miríade de políticas públicas mal desenhadas, mas não acredita na existência de um esforço concentrado do Estado nesse sentido (David Garland segue a mesma linha), praticamente chamando quem pensa de forma contrária de paranoico. Já Michele Alexander deixa bem claro que, na sua opinião, existem, sim, ações calculadas e com objetivo de dar uma roupagem de licitude a práticas racistas e discriminatórias. Achile Mbembe segue em linha semelhante ao teorizar sobre a necropolítica e o homo sacer. Seriam estes últimos teóricos da conspiração para o examinador?
Como se vê, não faltam ângulos para uma análise válida e profícua do encarceramento em massa e sua seletividade, não havendo qualquer justificativa para se apontar o posicionamento de um criminólogo específico como sendo o “correto”, mormente quando a questão não especificou que era a partir dos escritos deste criminólogo que a resposta deveria ser confeccionada.
Fernando Antunes Soubhia
Defensor Público no Estado de Mato Grosso. Mestre em Criminologia e Sistema de Justiça pela City, University of London.
MANIFESTAÇÃO – PROFESSORA LUCIANA COSTA FERNANDES
Manifesto, através da presente nota, discordância do gabarito oficial publicado, assim como da postura assumida, na prática, de correção e atribuição de pontuação, pela estimada banca Examinadora, referente à Q03 da Prova III do Certame para o cargo de Defensor Público do Estado da Bahia.
A referida trazia enunciado atual e relevante, bem como amplamente debatido no campo da crítica criminológica, constante do fenômeno do encarceramento em massa e perfil das pessoas criminalizadas em nosso país. Os indicadores trazidos pelo examinador deixam evidente, como há décadas se vêm debatendo, ser a população encarcerada formada majoritariamente por homens negros, jovens e com baixa escolaridade. O comando pedia da/o candidata/o que “explicasse” o perfil e discorresse sobre as “determinações que culminam no perfil da população prisional” em termos generalizantes.
Nesse sentido, muito embora as chaves analíticas trazidas como gabarito oficial sejam, em tese, pertinentes para a análise do fenômeno do “encarceramento em massa” em abstrato, representam também o apagamento de um legado de produções na área que percebem “raça” como âncora da seletividade penal brasileira e que precisariam constituir o núcleo essencial do referido gabarito. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos dos professores Silvio Almeida e Lélia Gonzalez, que constam da bibliografia do certamente; assim como outras produções que vêm ocupando o debate público sobre o tema, como das professoras Ana Flauzina, Thula Pires e Felipe Freitas.
Vale notar que a reflexão sobre a “orientação seletiva do sistema penal”, assim como a “influência de agências externas”; “incapacidade das agências policiais” e “criminalização conforme o estereotipo” constitui parte do que há décadas, desde o chamado giro da “reação social” na criminologia, se vem debatido neste campo. Todavia, também se tem apontado como a importação do debate nestes termos, sem a implicação à forma como o racismo constitui organicamente o sistema de justiça criminal, reforça as estruturas dos epistemicídios e da branquitude neste campo de saber. O deslocamento do eixo central de análise, portanto, trazido como gabarito oficial, acaba por alinhar-se em parte ao chamado racismo por denegação, trabalhado por Lélia Gonzalez, dada a não enunciação da raça como chave analítica principal na constituição do fenômeno. E torna-se ainda mais problemático considerando-se ter sido a questão voltada para o cargo de defensor público na Bahia que, sabemos, é o estado com a maior população negra de nosso país e desde onde a atuação militante desta instituição deve estar definitivamente engajada à luta antirracista que demanda, no mínimo, o apontamento da matriz colonial e racista de nossas relações de poder.
Pelos motivos esposados, adere às importantes manifestações que vêm reividincando da Banca a revisão do gabarito e da postura assumida quando da correção da mencionada questão.
Luciana Costa Fernandes
Doutoranda em Direito pela PUC-RIO; mestra e graduada em Direito pela UERJ; pesquisadora do IPEA; e professora de criminologia, direito e processo penal.
Confira aqui o ofício do Grupo de Trabalho em Igualdade Racial da Defensoria Pública do Estado da Bahia:
https://bit.ly/OficioFCC-DPEBA
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