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Representação no crime de estelionato e a divergência no STJ

A Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime) promoveu alterações em diversos diplomas legislativos. Entre as modificações realizadas, está a prevista no art. 171 do Código Penal, dispositivo que prevê o delito de estelionato.

O crime de estelionato era promovido por meio de ação pública incondicionada, salvo as exceções previstas no art. 182 do Código Penal. Com o advento da nova lei, a ação penal para o crime de estelionato passou a ser pública condicionada à representação como regra. Apenas de forma excepcional é que a ação penal para esse crime será pública incondicionada e nas hipóteses do § 5º do art. 171, se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental ou maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.

A disposição possui conteúdo misto ou híbrido – penal e processual – pois a opção legislativa pela ação penal pública condicionada à representação poderá ensejar de extinção de punibilidade se não oferecida no prazo de seis meses, na forma dos arts. 103 e 107, IV, do CP e 38 do CPP.

A Lei n. 13.964/2019 não trouxe disposições de direito intertemporal e, em virtude disso, uma polêmica já chegou ao Superior Tribunal de Justiça. O § 5º do art. 171 do CP deve retroagir? E se deve, existe algum marco temporal no qual essa retroação deve ocorrer?

No STJ, as turmas que lidam com a matéria penal e processual penal deram soluções diferentes para a hipótese.

Ao julgar o HC 573.093/SC, em 09/06/2020, a Quinta Turma entendeu que a “a retroatividade da representação no crime de estelionato não alcança aqueles processos cuja denúncia foi oferecida, ou seja, ações penais anteriores à inovação legislativa que se encontram em trâmite no primeiro grau, nos Tribunais, no STJ e STF” (ver página 09 do voto do relator)

Entendeu-se que “além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo.  Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade.”

Assim, para a Quinta Turma do STJ, a retroatividade do art. 171, § 5º, do Código Penal, não atinge os processos em que a denúncia já foi oferecida quando da entrada em vigor da Lei n. 13.964/2019 (em vigor a partir de 23 de janeiro de 2020). A retroatividade da representação ficaria restrita, pois, à fase policial.

A Sexta Turma do STJ, por sua vez, ao analisar o HC 583.837/SC, julgado em 04 de agosto de 2020, chegou à conclusão um pouco diferente. Considerou que “a retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal.”

A Sexta Turma aplicou o art. 171, § 5º, do Código Penal, sem realizar o “corte temporal” efetuado pela Quinta Turma. Para a Sexta Turma, a retroatividade independe se o processo já tem denúncia oferecida ou não, como entendeu a Quinta Turma.

A Sexta Turma adotou, a meu ver, uma providência muito importante. Como dito acima, a Lei n. 13.964/2019 não trouxe regras de direito intertemporal e, por isso, este colegiado resolveu o impasse aplicando analogicamente o art. 91 da Lei n. 9.099/1995, ou seja, conferiu prazo de 30 (trinta) dias para a vítima manifestar interesse na continuação da persecução penal, sob pena de decadência:

“Art. 91. Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.”

Assim, em síntese: 1) a Quinta Turma do STJ entende que a retroatividade do novo art. 171, § 5º, do Código Penal, não alcança aqueles processos cuja denúncia foi oferecida, de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo e 2) Para a Sexta Turma do STJ, a retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, independentemente da fase processual, não gerando a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal.

Entendo correta a posição da Sexta Turma do STJ no julgamento acima (HC 583.837/SC), pois a norma repercute no direito material e, nesse campo, vigora a regra segundo a qual a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF/88 e art. 2º, parágrafo único, do CP). Deve prevalecer a retroatividade benéfica, independente da fase em que se encontre a persecução penal. Todavia, apenas ressalvo que o prazo a ser aplicado, a meu ver, deveria ser o de 6 (seis) meses a contar da intimação da vítima (e não 30 dias a contar da intimação da vítima), pois o Código de Processo Penal e o Código Penal possuem prazo para oferecimento da representação – ver arts. 38 do CPP e 103 do CP, de modo que a aplicação do prazo de 30 (trinta) dias da Lei dos Juizados Especiais não nos parece a melhor solução, uma vez que havendo prazo no CP ou no CPP, não se deveria aplicar a Lei n. 9.099/1995.

Cumpre salientar, porém, que a Sexta Turma do STJ proferiu decisão contrariando entendimento por ela mesmo adotado.

Na decisão abaixo (EDcl no AgRg no AREsp1593458/SP, julgado em 04/08/2020), adotou-se o entendimento de que a retroatividade do novo art. 171, § 5º, do Código Penal é restrita à fase anterior ao oferecimento da denúncia, tal como decidido pela Quinta Turma no HC 573.093/SC, julgado em 09/06/2020. Eis a ementa do acórdão:

“PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. RETROATIVIDADE DA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). ESTELIONATO. AÇÃO PENAL CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO. NORMA DE NATUREZA HÍBRIDA QUE NÃO DEVE ATINGIR ATO JURÍDICO PERFEITO E ACABADO (DENÚNCIA OFERECIDA). AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE FLAGRANTE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS.

1. O acórdão está devidamente fundamentado e não incorreu em nenhum vício que desse ensejo aos aclaratórios. O embargante pretende, na verdade, rediscutir o tema decidido pelo agravo, finalidade a que não se destinam os embargos de declaração. 2. A retroatividade da norma que condicionou a ação penal relativa ao crime de estelionato à representação da vítima, por sua natureza híbrida – processual e material –, não deve atingir o processo, haja vista a existência de ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia). Precedente.

3. Embargos de declaração rejeitados.” (EDcl no AgRg no AREsp1593458/SP, Rel. Min. Rogério Schietti, Sexta Turma, julgado em 04/08/2020, DJe 14/08/2020).

Interessante notar que adecisão acima, proferida em 04/08/2020, contraria posição da mesma Sexta Turma tomada no mesmo dia (HC 583.837/SC).

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Rodrigo Leite

Coautor do livro “Análise das Divergências Jurisprudenciais no STF e STJ”, Editora Juspodivm. Autor do livro “Tombamento – Vol. 36 – Coleção Leis Especiais para Concursos”, Editora Juspodivm. Autor do livro “Desapropriação – Vol. 39 – Coleção Especiais para Concursos”, Editora Juspodivm. Coautor do livro “Saberes Jurisprudenciais”, Editora Saraiva. Especialista em Direito Público e Direito Processual Civil. Mestre em Direito Constitucional. Aluno laureado das Turmas 2005.2 da Universidade Potiguar. Autor de artigos jurídicos. Máster Universitário em Direito Constitucional pela Universidad Del País Vasco, San Sebastián, Espanha. Advogado licenciado. Assessor de Desembargador do TJRN.

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