Escrito por Rodrigo Leite
Mestre em Direito Constitucional, Autor,
Assessor no TJRN e Conteudista do SupremoTV.
Ao analisar a ADI 6514/CE, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado encerrado em 29/03/2021, o Plenário do Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional trecho da Constituição do Estado do Ceará que conferia foro por prerrogativa de função aos Defensores Públicos perante o Tribunal de Justiça do Estado em virtude do cometimento de crimes comuns ou de responsabilidade.
No passado, o STF já admitiu que Constituições Estaduais poderiam conferir foro por prerrogativa de função a integrantes das funções essenciais à justiça, tais como Procuradores do Estado e Defensores Públicos – vide ADI 2587/GO, Rel. Min Maurício Corrêa, Rel. p/ Acórdão Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2004, DJ 06/11/2006.
Todavia, a partir do julgamento do mérito da ADI 2553/MA, em 15/05/2019, o STF passou a entender que a Constituição da República não autoriza os Estados a ampliarem as hipóteses de prerrogativa de função. De acordo com o Plenário do Supremo, a partir desse julgamento, o foro por prerrogativa de função é definido em caráter excepcional, sendo vedado às Constituições Estaduais, de forma discricionária, estendê-lo àqueles que não abarcados pelo legislador federal – ADI 2553/MA, Rel. Gilmar Mendes, Rel. p/ Acórdão Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 15/05/2019, DJe 17/08/2020.
Adotou-se uma interpretação mais restritiva quanto ao assunto, fruto também da posição tomada desde a emblemática Questão de Ordem na Ação Penal 937/RJ, julgada em 03/05/2018, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, quando o Supremo decidiu que o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
Inegavelmente, as decisões tomadas na ADI 2553/MA (15/05/2019) e na QO na AP 937/DF (03/05/2018), representaram significativas guinadas na posição tradicional do Supremo acerca do tema e sinalizaram um claro comportamento da Corte em refrear elastecimentos ou ampliações do foro por prerrogativa de função por Constituições Estaduais e de estreitar seu âmbito de incidência quanto aos agentes contemplados no Constituição Federal.
De fato, apesar da Constituição Federal prever que os Estados-membros têm competência para organizar a sua Justiça (art. 125), essa organização deve observar o modelo federal, norma de parametricidade, balizamento ou de contenção aos Estados-membros, sob pena de serem criadas situações díspares entre os entes federativos em colisão com princípios caros à República.
Contemplam-se os princípios constitucionais organizatórios ou estabelecidos, aqueles que consagram limites autônomos, vedando ou proibindo o exercício indiscriminado do Poder Constituinte Decorrente inicial ou reformador, funcionando como balizas reguladoras da capacidade de auto-organização dos Estados – sobre o tema, nessa linha: BULOS, Uadi Lammego. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 430; MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1555. São princípios que configuram acervo expressivo de limitações da autonomia local – ver voto do Min. Celso de Mello na ADI 216 MC/PB, julgado em 23/05/1990.
O entendimento adotado pelo STF na ADI 2553/MA e repetido na ADI 6514/CE também já foi seguido em outras ações – ver ADI 6515 MC-Ref/AM, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 23/11/2020, DJe 03/12/2020 (para Procuradores do Estado e Defensores Públicos); ADI 6508 MC-Ref/RO, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 23/11/2020, DJe 03/12/2020 (para Defensores Públicos) e ADI 6501 MC-Ref/PA, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 23/11/2020, DJe 03/12/2020 (também para Defensores Públicos) e ADI 6516 MC-Ref/AL, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 23/11/2020, DJe 03/12/2020 (para Procuradores do Estado e Defensores Públicos).
Interessante notar também, a título de curiosidade, que o art. 46, VIII, “e” da Constituição do Estado de Goiás passou por três interpretações do STF ao longo do tempo. Inicialmente, quando foi analisada a medida cautelar da ADI 2587/GO (em 15/05/2002), o Tribunal entendeu que seria possível a fixação de foro por prerrogativa para “Procuradores do Estado e da Assembleia Legislativa, Defensores Públicos e Delegados de Polícia”. Um pouco depois, quando da análise do mérito da ADI 2587/GO, em 1º/12/2004, o STF entendeu que o foro somente seria possível para “Procuradores do Estado e da Assembleia Legislativa e os Defensores Públicos”, excluindo os Delegados do rol de agentes com foro. E, anos depois, o foro para todos esses agentes foi declarado integralmente inconstitucional no deslinde da ADI 6512/GO, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 21/12/2020, DJe 10/02/2021.
Segundo o STF, portanto, as regras sobre foro por prerrogativa de função têm caráter excepcionalíssimo, e estendê-las a defensores públicos destoa da regra geral de isonomia emanada do princípio republicano. No julgamento da ADI 6514/CE, declarou-se inconstitucional o foro por prerrogativa de função para os Defensores Públicos do Estado do Ceará, mas modulou-se os efeitos da decisão para que a declaração de inconstitucionalidade da norma só tenha eficácia a partir da publicação da ata de julgamento.
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