LARISSA MASCOTTE, Delegada de Polícia
ANA PAULA BALBINO, Delegada de Polícia
A Lei n°. 11.340/2006, ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal e da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, dispôs, dentre outras, as providências legais imediatas cabíveis a serem adotadas pela Autoridade Policial, após tomar conhecimento da iminência ou da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, como eventuais medidas protetivas de urgência, a serem aplicadas pelo juiz ao agressor, em conjunto ou separadamente.
As medidas protetivas de urgência são aquelas previstas nos artigos 22, 23 e 24 da Lei Maria da Penha. Segundo salienta Antonio Scarance Fernandes, no que tange às cautelares em geral, “são providências urgentes, com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito da parte, evitando que se realize, assim a finalidade instrumental do processo, consistente em uma prestação jurisdicional justa”.
Com efeito, para a concessão das medidas cautelares, dois pressupostos são classicamente apontados pela doutrina, quais sejam, periculum in mora (perigo da demora) e fumus boni iuris (aparência do bom direito). Conforme pondera o Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Rogério Sanches Cunha, e Ronaldo Batista Pinto, em sua obra Violência Doméstica Lei Maria da Penha – 11.340/2006, o juiz, ao analisar a necessidade da adoção de tais medidas, deve-se atentar à presença dos referidos pressupostos, podendo inclusive o juiz designar audiência de justificação prévia prevista no parágrafo 2° do art. 300 do CPC/2015 (Lei n°. 13.105/2015).
Deve-se ressaltar que até a promulgação da Lei 13.984/20, a Lei Maria da Penha previa em seu artigo 22, como medidas de urgência a serem aplicadas pelo juiz, em conjunto ou separadamente:
“I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.”
Não obstante o silêncio legislativo acerca da frequência em programas educativos pelos agressores como forma de medida protetiva, a Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal) previa em seu artigo 152, em decorrência da determinação do artigo 45 da Lei 11.340/06:
“Artigo 152. Poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempo de permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas.
Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.”
Assim, a adoção de programas de recuperação e reeducação do agressor já era uma realidade prevista na execução penal. Ademais, diversos Juizados do Poder Judiciário determinavam ainda, a título de medida protetiva de urgência, o comparecimento obrigatório do agressor para atendimento psicossocial e pedagógico como prática de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher.
Com o advento da Lei nº 13.984, de 3 de abril de 2020, que alterou o artigo 22 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), essa lacuna foi formalmente colmatada, sendo criadas duas novas medidas protetivas de urgência: a) frequência do agressor a centro de educação e de reabilitação e; b) acompanhamento psicossocial do agressor por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.
O artigo 2º da Lei 13.984/20 dispõe:
“Art. 2º O art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), passa a vigorar com as seguintes alterações:
VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e Ver tópico
VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio” .
Com a inclusão formal da prática no rol previsto no artigo 22 da Lei 11.340/06, o comparecimento nesses programas passa a ser obrigatório quando determinado pelo juiz em sede de expediente de medidas protetivas, o que poderá acarretar, inclusive, a prisão em flagrante do agressor diante da falta injustificada nos programas, já que o artigo 24-A da Lei Maria da Penha institui o crime de desobediência de medidas protetivas. Em caso de não flagrância, é possível ainda a representação da prisão preventiva pela Autoridade Policial, com fulcro no artigo 312, C/C artigo 313, inciso III, do Código de Processo Penal.
Destarte, a Polícia Judiciária deve ter acesso completo ao relatório de frequência dos programas de reflexão e reabilitação e de acompanhamento psicossocial, devendo ser imediatamente comunicada no caso de falta injustificada do agressor, o qual poderá ser inclusive conduzido em flagrante delito à presença da Autoridade Policial. Constatado o descumprimento e presente o estado flagrancial, deve a Autoridade Policial ratificar a prisão com base no artigo 24-A da Lei 11.340/06, não podendo arbitrar fiança ao autuado (artigo 24, §2º, da Lei 11.340/06)
Ressalte-se ainda que esta alteração vai de encontro à Convenção de Belém do Pará, a qual recomenda aos Estados que adotem todas as medidas ao seu alcance para modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens, de mulheres e, nos dias de hoje, de qualquer gênero, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou da superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher.
O comparecimento dos agressores deste tipo de violência em cursos e grupos de reflexão que abordam temáticas relativas à identidade de gênero, masculinidade tóxica, machismo, assunção de responsabilidade por seus próprios atos, entre outros, é um método reconhecido para coibir, prevenir e reduzir a reincidência da violência doméstica contra a mulher. Além disso, tende a ocasionar mudanças significativas nas vidas desses homens e de suas companheiras, sobretudo na ressignificação de seus papéis e eliminação de padrões tóxicos, acarretando a consequente redução dos índices de reincidência e acionamento das vias policiais por parte das vítimas.
Isso porque a condenação do agressor de forma isolada não se mostra suficiente para quebrar o ciclo da violência, já que 65% (sessenta e cinco por cento) dos casos relativos a violência doméstica e familiar são de autores reincidentes.
Segundo um levantamento recente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, entre os anos de 2019 e 2020 houve um aumento expressivo na participação dos agressores nos grupos reflexivos (39%). E este número só tende a aumentar exponencialmente nos próximos meses e anos.
Importante acrescer que, desde 2011, a Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), através do Departamento de Investigação, Orientação e Proteção à Família, oferece o Programa “Dialogar”, em parceria com o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), desenvolvendo práticas reflexivas e de responsabilização do investigado, com o fim precípuo de enfrentar e prevenir todas as formas de violência contra a mulher, via trabalho transdisciplinar, composto por profissionais da área jurídica, psicologia e serviço social.
Por fim, conclui-se que a Lei 13.984/20 veio a tornar ainda mais completa e positiva a Lei Maria da Penha, na medida em que fixa como medida protetiva a ressocialização do agressor e, consequentemente, trata como infração penal a não frequência do investigado aos grupos de reflexão, reabilitação e acompanhamento psicossocial determinados pelo juiz.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL. Código de Processo Penal. (Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941).
BRASIL, Constituição Federal de 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 04 abr 2020.
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica (Lei Maria da
Penha): Lei 11.340/2006 comentado artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
DIAS, M. B. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
LEI 11.340, DE 07 DE AGOSTO DE 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8° do art. 226 da Constituição Federal, as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 06 abr 2020.
Globo.com. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/sociedade/582327-senado-aprova-reabilitacao-para-homens-que-agridem-mulheres-antes-de-serem-condenados-24234642?fbclid=IwAR1ek7p3y3X-6g3fMUaAFOrSL49IvTjGPgnaBEA600RJMybOCQJ4irfFzF0>. Acesso em: 05 abr 2020. SCARANCE, Fernandes Antônio. Processo Penal Constitucional. 4. ed. São Paulo: RT 2005, p.311.
Comments (1)
Jamilia de Sousa Rochasays:
14 de April de 2020 at 09:49Excelente texto!