Casamento sologâmico: autonomia e amor-próprio ou disfarce da solitude contemporânea?

Carla Carvalho

Coordenadora da pós-graduação
em Direito da Saúde no Supremo

 

A polêmica da empresária mineira que anunciou a realização de celebração de um “casamento sologâmico”, em que apenas ela figuraria no rito de um suposto matrimônio, alcançou repercussão nos jornais e redes sociais do Brasil na semana do dia 20 de maio. Por trás da notícia, anunciada como uma ode à autonomia e amor-próprio, sobressaem, contudo, uma inteligente estratégia empresarial já disseminada mundo afora, além de questionamentos jurídicos.

Muito além de um mero fato curioso ou excentricidade, a notícia nos induz reflexões acerca da família como instituto social e da forma como o Direito a acolhe e regula.

No direito privado, classifica-se os fatos em jurídicos ou não jurídicos [1], conforme o acontecimento produza ou não repercussões ou efeitos para o Direito. A toda evidência, o dito “casamento sologâmico” se insere no mundo do não jurídico. Para existir casamento (e aqui nem se pretende adentrar na questão da validade do ato), é imperioso que se verifique a presença de: (i) consentimento de duas pessoas (independentemente do gênero ao qual pertencem, na jurisprudência dos tribunais superiores); (ii) intenção ou animus de se estabelecer relação matrimonial. À falta de bilateralidade não se constitui casamento.

Não sendo casamento, questiona-se se de alguma forma esta entidade encontra amparo jurídico, produzindo efeitos análogos na vida civil. O casamento sabidamente produz relevantes efeitos de ordem pessoal e patrimonial, com destaque para a constituição de uma família, estabelecimento de regime de bens, dever de mútua assistência (alimentos) e direitos sucessórios.

O cerne de tais efeitos situa-se na alteridade que é característica do vínculo matrimonial. Estabelece-se regime de bens pelo fato de que dois patrimônios distintos passam a conviver no âmbito de uma “comunhão plena de vida”, conforme dispõe a lei. Mútua assistência, seja em vida pela prestação de alimentos, seja em suas repercussões post mortem próprias do direito sucessório, também pressupõe duplicidade subjetiva, pois não há que se falar em mutualidade em relação a si mesmo.

Poder-se-ia talvez questionar, em um esforço hercúleo de encontrar alguma relevância jurídica, se o fato ensejaria a constituição de uma entidade familiar. O instituto da família unipessoal fora reconhecido pela jurisprudência em razão de sua específica conexão com a tutela do bem de família, podendo ser utilizado também para a garantia de inclusão, em políticas públicas que se baseiem no critério de renda familiar, de pessoas que compõem sozinhas seus núcleos familiares. À falta de tais repercussões práticas, seu reconhecimento cai no vazio dos institutos que conduzem o Direito a uma eterna reflexão teórica distante da realidade concreta. Desta forma, a configuração de uma família unipessoal, como acolhem as decisões dos tribunais, em nada se relaciona a vínculos matrimoniais ou manifestações de estima pessoal.

Como fato não jurídico, o tal fenômeno sologâmico reflete o sensacionalismo de uma sociedade carente em que é preciso mostrar sua “melhor imagem” nas redes sociais. Há uma simulação de felicidade plena para dissimular a realidade da vida cotidiana, permeada de infelicidade.

Evidencia, ainda, o quão matrimonialista a sociedade se mantém, sendo preciso dar o nome de um instituto tradicional – e que num passado ainda recente constituía na única forma legítima de formação de entidades familiares, segundo o Direito – para um fato que se distancia completamente de seus elementos essenciais. Fechadas as cortinas do espetáculo, a muitos restará o vazio de um casamento sem par.

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[1] não confunda com o antijurídico, que decorre de uma valoração jurídica de que um ato viola o ordenamento, atraindo reação de repulsa pela aplicação de sanção.

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