A Emenda Constitucional n. 45/2004 introduziu na Constituição da República o denominado Incidente de deslocamento de competência (IDC), cuja previsão está contida no art. 109, § 5º:
“Art. 109.
(…)
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.”
Trata-se de instituto que visa, em linhas gerais, deslocar a competência do âmbito Estadual para a esfera Federal quando o caso implicar em “grave violação de direitos humanos” e que objetiva “assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos”.
Segundo André da Carvalho Ramos (Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 533) “o IDC decorre da internacionalização dos direitos humanos e, em especial, do dever internacional assumido pelo Estado brasileiro de estabelecer recursos internos eficazes e de duração razoável.”
Para Fabiano Melo (Direitos Humanos. São Paulo: Método, 2016, p. 348) é um instrumento político-jurídico para assegurar o cumprimento das obrigações internacionais que o Estado brasileiro assume na proteção e garantia dos direitos humanos. Segundo ele, é amplo o espectro de direitos que podem ensejar o IDC [pelo fato do § 5º se referir a uma expressão abrangente: grave violação de direitos humanos], daí a margem do julgador para a delimitação da incidência do instituto.
O único legitimado para requer o incidente é o Procurador-Geral da República (apesar de haver propostas para alargar essa legitimidade) e a competência para seu julgamento é do Superior Tribunal de Justiça (STJ). De acordo com o art. 1º, parágrafo único, da Resolução n. 06, de 16/02/2005 do STJ, a competência para julgar o IDC será da Terceira Seção, órgão composto por Ministros da 5ª e da 6ª Turmas. Guardo reservas quanto à essa definição de competência, pois conforme posição da doutrina, a violação aos direitos humanos pode ter repercussões cíveis, de modo, que em minha visão, a competência poderia ser da Terceira Seção ou da Corte Especial, a depender do caso analisado.
Registro ainda que existem ações diretas de inconstitucionalidade em trâmite no STF questionando o IDC – ADI 3493/DF (concluso ao relator desde 24/03/2017) e ADI 3486/DF (concluso ao relator desde 28/03/2017), ambas de relatoria do Min. Dias Toffoli. Segundo os requerentes, o IDC viola o princípio do juiz natural e quebra o pacto federativo. Apesar disso, o Superior Tribunal de Justiça vem processando os incidentes, como veremos a seguir.
São requisitos para sua instauração:
1) a constatação de grave violação efetiva e real de direitos humanos;
2) a possibilidade de responsabilização internacional, decorrente do descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais; e
3) a evidência de que os órgãos do sistema estadual não mostram condições de seguir no desempenho da função de apuração, processamento e julgamento do caso com a devida isenção (incapacidade das autoridades locais de oferecer respostas efetivas).
Trata-se de instituto que deve ser “utilizado em situações excepcionalíssimas” – ver trecho do voto do Min. Rogerio Schietti Cruz no IDC 5/PE, julgado em 28/05/2014 e que não pode “esvaziar a competência da Justiça Estadual e, em contrapartida, inviabilizar o funcionamento da Justiça Federal” (trecho do voto do Min. Jorge Mussi no IDC 3/GO, julgado em 10/12/2014).
De fato, por se tratar “de exceção à regra geral da competência absoluta, somente deve ser efetuado em situações excepcionalíssimas, mediante a demonstração de sua necessidade e imprescindibilidade ante provas que revelem descaso, desinteresse, ausência de vontade política, falta de condições pessoais e/ou materiais das instituições – ou de uma ou outra delas – responsáveis por investigar, processar e punir os responsáveis pela grave violação a direito humano, em levar a cabo a responsabilização dos envolvidos na conduta criminosa” (IDC 10/DF, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 28/11/2018, DJe 19/12/2018).
O primeiro IDC analisado pelo STJ envolveu o homicídio cometido em face da Irmã Dorothy Stang, religiosa norte-americana que realizava trabalhos em favor da reforma agrária e dos povos da Amazônia. O deslocamento foi rejeitado, pois se considerou que as autoridades estaduais encontravam-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos. Após três julgamentos, o mandante do crime foi condenado a 30 anos de prisão (IDC 1/PA, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Terceira Seção, julgado em 08/06/2005, DJ 10/10/2005, p. 217).
Para admissão do incidente, como dito, deve haver a demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder com a persecução penal.
A federalização ou o deslocamento exige prova concreta da incapacidade das autoridades locais de investigarem e julgarem o caso, não bastando o “rumor” ou a gravidade abstrata do caso.
O IDC 2 envolveu o homicídio de um vereador e defensor dos direitos humanos, autor de diversas denúncias contra a atuação de grupos de extermínio na fronteira dos Estados da Paraíba e de Pernambuco, ocorrido em 24/01/2009, no Município de Pitimbu/PB. Nesse caso, o STJ considerou que era “notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias” e admitiu o deslocamento para a Justiça Federal da Paraíba (IDC 2/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, Terceira Seção, julgado em 27/10/2010, DJe 22/11/2010).
A Corte também admitiu o deslocamento no caso que envolveu um querido colega e meu professor, Promotor de Justiça estadual em Pernambuco, brutalmente assassinado “numa emboscada”. Na ocasião o STJ entendeu que havia falta de entendimento operacional entre a Polícia Civil e o Ministério Público estadual o que ensejou um conjunto de falhas na investigação criminal que comprometia o resultado final da persecução penal, com possibilidade, inclusive, de gerar a impunidade dos mandantes e dos executores do citado crime de homicídio. Deslocou-se o processo para a Justiça Federal de Pernambuco (a capital, mais precisamente) – IDC 5/PE, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 13/08/2014, DJe 01/09/2014.
O STJ também admitiu o deslocamento no IDC 3/GO que envolvia policiais militares na composição de grupos de extermínio. Considerou-se que o Estado de Goiás foi omisso na investigação de tais agentes, os demais requisitos estavam preenchidos e ocorreu o deslocamento – IDC 3/GO, Rel. Ministro Jorge Mussi, Terceira Seção, julgado em 10/12/2014, DJe 02/02/2015.
No IDC 14/ES, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 08/08/2018, DJe 22/08/2018, que versava sobre a greve de policiais militares do Estado do Espírito Santo, o STJ entendeu que não houve inércia das instâncias locais em julgar os supostos crimes militares nem havia risco de responsabilização internacional do Brasil e, por isso, negou o deslocamento.
Também no IDC 10/BA, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 28/11/2018, DJe 19/12/2018, caso que envolvia a morte 12 pessoas entre 15 e 28 anos e 6 feridos, em fevereiro de 2015 na cidade de Salvador, no que se denominou de Chacina da Cabula, o STJ também negou o deslocamento, pois considerou não ocorreu deficiência de funcionamento nem tampouco comprometimento ideológico ou subjetivo do Judiciário estadual que dificultasse a análise isenta dos fatos.
No dia 27/05/2020, o STJ analisou o IDC 24/RJ, no qual se requeria o deslocamento da competência do rumoroso caso envolvendo o homicídio da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, ocorrido em 2018 no Rio de Janeiro. Na linha do que já vinha decidindo, o STJ entendeu que o caso não preenche os requisitos necessários para a federalização, pois não foi possível verificar desídia, inércia ou desinteresse por parte das autoridades estaduais nas investigações para solucionar o crime.
Segundo a relatora do processo, Min. Laurita Vaz, “há um evidente empenho dessas autoridades em solucionar os crimes, cujos executores, inclusive, já foram identificados.”
A Ministra lembrou que, no dia seguinte ao crime, o Ministério Público Federal instaurou um grupo de trabalho composto por cinco Procuradores da República para acompanhar as investigações o que denotou “açodamento, com precipitada invasão de atribuições”.
E lembrou que “não há notícia de abertura de nenhum procedimento formal perante as cortes internacionais para apurar eventual responsabilidade do Brasil decorrente de suposto descumprimento de obrigações assumidas em tratados de direitos humanos.” No mais, a relatora conclui que não há conivência ou imobilidade das autoridades locais na apuração de crimes praticados por milicianos.
Assim, a meu ver corretamente, o STJ manteve a competência do caso para análise, investigação e julgamento pelas autoridades estaduais do Rio de Janeiro, pois a investigação do caso é bastante difícil e as instituições locais estão atuando para solucionar o crime. Trata-se de caso muito complexo, cuja resolução e desate envolve a realização de provas periciais, análise de vídeos, oitiva de testemunhas, dos investigados, entre outras providências. Ademais, o deslocamento para a esfera federal não evidencia que lá a investigação obtivesse maior êxito.
Como dito pela Ministra Laurita Vaz,
“As tribulações inerentes ao caso – frise-se, de altíssima complexidade – não seriam exclusividade dessa ou daquela polícia judiciária. Ouso afirmar que qualquer instituição brasileira de investigação enfrentaria as mesmas dificuldades, os mesmos obstáculos e contratempos surgidos no inquérito em curso perante a Polícia Civil fluminense.”
E de fato, como lembrou o querido Prof. Marcelo Navarro (Min. Ribeiro Dantas), nada indica que a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro não consigam lidar com as investigações criminais, e também não há certeza de que, na hipótese de transferência do processo para a Polícia Federal e o MPF, haveria maior sucesso na persecução penal.
Por não estarem atendidos, concomitantemente, a patente violação de direitos humanos, a possibilidade de responsabilização do Brasil em nível internacional e a constatação de ineficiência das instituições locais responsáveis pela apuração criminal, o incidente de deslocamento do Caso Marielle foi negado.
A decisão do STJ no denominado Caso Marielle é correta, pois se está diante de uma investigação bastante complicada que demoraria, penso eu, se também estivesse no âmbito federal. Assim, ainda que com sobressaltos, as autoridades do Rio de Janeiro estão empenhadas na solução do caso. A instauração do IDC, como dito, deve ser exceção e somente ocorre se demonstrada a incapacidade do Estado-membro, por suas instituições (Polícia, Ministério Público e Judiciário), de conduzir a persecução penal devida, o que no Caso Marielle Franco não ficou demonstrado.
Em síntese, no STJ os incidentes analisados foram assim solucionados:
Admitiu-se deslocamento: | Não se admitiu o deslocamento: |
IDC 2/PB (homicídio de vereador que denunciava grupo de extermínios entre os Estados da Paraíba e de Pernambuco) | IDC 1/PA (homicídio da Irmã Dorothy Stang) |
IDC 3/GO (investigação de policiais militares que integravam grupos de extermínio desde a década de 2000) | IDC 4/PE (rejeitado por não ter sido proposto pelo Procurador-Geral da República) |
IDC 5/PE (homicídio de Promotor de Justiça em Pernambuco) | IDC 10/BA (Chacina da Cabula – morte de 12 pessoas em Salvador) |
IDC 14/ES (greve de policiais doEspírito Santo) | |
IDC 24/RJ (homicídio da Vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes) |
__________________________________
Rodrigo Leite
Coautor do livro “Análise das Divergências Jurisprudenciais no STF e STJ”, Editora Juspodivm. Autor do livro “Tombamento – Vol. 36 – Coleção Leis Especiais para Concursos”, Editora Juspodivm. Autor do livro “Desapropriação – Vol. 39 – Coleção Especiais para Concursos”, Editora Juspodivm. Coautor do livro “Saberes Jurisprudenciais”, Editora Saraiva. Especialista em Direito Público e Direito Processual Civil. Mestre em Direito Constitucional. Aluno laureado das Turmas 2005.2 da Universidade Potiguar. Autor de artigos jurídicos. Máster Universitário em Direito Constitucional pela Universidad Del País Vasco, San Sebastián, Espanha. Advogado licenciado. Assessor de Desembargador do TJRN.
Comments (1)
detetive particular spsays:
21 de April de 2022 at 01:58Falando sobre pesquisa, ensino e sade na enfermagem.