Violência contra a Mulher na Pandemia e Políticas Públicas

O atual cenário mundial em decorrência da pandemia do coronavírus tem revolucionado toda a sociedade de uma forma assustadora. Essa situação chegou sem aviso prévio e, no âmbito familiar, a tensão vivida por mulheres vítimas de violência doméstica se intensifica, agravando-se essa realidade, em razão do isolamento social praticado por todo mundo. Infelizmente, a quarentena tem graves efeitos colaterais dos quais se destaca a violência doméstica.

Não há dúvida de que o confinamento intensificou um problema pré-existente que é a subnotificação de ocorrências. Em que pese o trabalho diuturno e incessante da Polícia Judiciária, da Justiça e demais órgãos que compõem a rede de enfretamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, neste momento, o fato é que as notificações de violências têm sofrido redução significativa.

Tal diminuição se dá, além da dificuldade do rompimento do ciclo da violência doméstica por parte dessas vítimas, obviamente, em virtude de as mulheres terem dificuldades de se deslocar até uma delegacia de polícia, face ao receio de contaminação e restrições impostas neste período, e, também, pelo fato de estarem na mira do seu agressor vinte quatro horas.

É de suma importância evidenciar que, a incerteza e ansiedade geradas pelo atual momento, propiciam o aumento do consumo de bebida alcoólica e drogas ilícitas, que, somados à crise financeira e desemprego, proporcionam comportamentos violentos, o que, claramente, intensifica os casos de subnotificação e o risco de aumento do feminicídio.

O caput do artigo 9º da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, expressamente dispõe que “a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada” entre três sistemas distintos, porém interligados, de assistência, quais sejam; social, de saúde e de segurança.

Essa preocupação do legislador é um marco distintivo e importante, já que o conflito doméstico revela dinâmicas personalíssimas, sendo ineficaz qualquer generalização.

Durante a quarentena alguns Estado, em atendimento à Constituição Federal no artigo 226, §8º, vêm promulgando leis que visam reduzir a subnotificação de ocorrências durante a pandemia, através de criação de canais digitais de denúncia, bem como através de medidas para empoderar a mulher inserida no confinamento juntamente com o seu agressor.

O Estado de Minas Gerais sancionou aos 17 de abril de 2020, a Lei nº 23.634, determinando a atuação de Equipes de Saúde da Família, compostas por agentes comunitários de saúde, qualificados, que através das visitas domiciliares periódicas irão identificar e notificar eventuais casos de agressões, e, ainda, acolher e orientar de modo humanizado as vítimas.

Conforme se extrai do texto da referida Lei, o Estado cumprindo o seu papel de garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares intervirá dentro de cada lar onde ocorra qualquer prática de violência contra mulheres, crianças e idosos.

Na mencionada Lei estadual verificamos, sem sombra de dúvida, uma grande efetividade da Lei Maria da Penha neste momento tão difícil de nossa sociedade. O Estado, através das Equipes de Saúde da Família, estará efetivamente cumprindo o seu papel de proteger, através de um programa assistencial e de saúde integrados entre si, conforme preconizado no caput do artigo 9º da Lei Maria da Penha.

A ação proposta na Lei nº 23.634, de 2020, é claramente uma política pública necessária e eficaz no atual momento de quarentena de isolamento social, pois ela traduz em uma maneira eficaz de coibir violência contra a mulher, em total obediência aos termos do parágrafo oitavo do artigo 226 da Constituição Federal, e, como tal, deveria ser aplicado por todo Estado brasileiro.

Além do mais, o Brasil assumiu o compromisso de proteger e eliminar todo tipo de violência contra a mulher no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos, bem como a assinou a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (BRASIL, 2002) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ( BRASIL, 2002).

Sob a mesma ótica, objetivando minimizar os danos acarretados pela quarentena no âmbito da violência doméstica, o Distrito Federal sancionou a Lei nº 6.539, de 13 de abril de 2020, que dispõe sobre a comunicação dos condomínios residenciais aos órgãos de segurança pública sobre a ocorrência ou indício de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente ou idoso em seu interior.

Nos termos da citada Lei do Distrito Federal, tramita o Projeto de Lei nº 1.054/19, aprovado pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais, que aguarda sanção do Governador do Estado de Minas Gerais, dispondo acerca do dever de os condomínios localizados no território do Estado comunicar a Delegacia de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais e aos Órgãos de Segurança Pública Especializados, por seus síndicos ou administradores, a ocorrência ou indício que apontem a existência de atos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente ou idoso, e que tenham sido praticados nas unidades condominiais ou nas áreas comuns de condomínio.

As mencionadas leis vêm como resposta ao silêncio histórico da sociedade que se baseava no velho adágio popular que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Essa omissão não prospera mais, pois hoje se deve “meter a colher sim” em relacionamentos familiares que resultem agressões para mulheres, idosos, crianças e adolescentes. Trata-se de uma questão de saúde pública, inalienável e irrenunciável.

Um dos grandes inimigos da violência doméstica sempre foi a omissão e a falta de conscientização da população desta triste realidade, mas com o advento das leis em comento cai por terra em definitivo qualquer dúvida sobre a imprescindibilidade de a sociedade intervir nas brigas inseridas nos contextos familiares e domésticos a fim de evitar um eventual feminicídio, inclusive. Tanto é que há previsão expressa, no caso de descumprimento, de cominação de responsabilidades aos síndicos e administradores, como advertência e fixação de multa, conforme as circunstâncias da infração.

Outro exemplo da efetividade da Lei Maria da Penha, através de política pública articulada com a segurança pública, é a que diz respeito aos canais digitais de denúncia criados para facilitar a vítima de agressão neste período de isolamento social.

A dificuldade das mulheres de acessarem os equipamentos públicos presencialmente fez com que alguns Estados e a União criassem canais de denúncias modernizados. Em Minas Gerais, o Projeto de Lei nº 1.876/20, que se encontra em fase de sanção do Governador, dispõe sobre o registro de violência doméstica por meio de Delegacia Virtual, durante a pandemia do coronavírus – COVID 19, podendo requerer via digital a concessão de medida protetiva de urgência relativos aos atos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Diante do exposto, a fim de combater a reconhecida subnotificação intensificada pelo confinamento em virtude da pandemia, tornou-se imperioso aos Estados agirem de maneira mais incisiva e rápida na questão da violência doméstica, em defesa dos direitos fundamentais humanos da mulher, criança, adolescente e idosos no contexto familiar, resultando na promulgação dessas significativas leis. E esse deve ser o exemplo a ser seguido pelos demais Entes da Federação neste momento caótico da sociedade como um todo, evitando-se, assim, maiores danos daqueles já causados naturalmente pela pandemia.

REFERÊNCIAS:

BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. Lei nº 11.340/2006: Aspectos Assistenciais, Protetivos e Criminais da Violência de Gênero, São Paulo: Editora Saraiva, 2014

BRASIL, Constituição Federal de 1988. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 04 maio 2020.

DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha, A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, São Paulo, Editora: Revisita dos Tribunais, 2015

HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha Lei com Nome de Mulher, Violência Doméstica e Familiar, Considerações à Lei nº 11.340/2006, Comentada artigo por artigo, Campinas/SP: Editora Servanda, 2012

LEI 11.340, DE 07 DE AGOSTO DE 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8° do art. 226 da Constituição Federal, as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 04 maio 2020.

LEI 23.634, DE 17/04/2020. Estabelece diretrizes para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher no Estado por meio da atuação das Equipes de Saúde da Família. Disponível em: < https://leisestaduais.com.br/mg/lei-ordinaria-n-23634-2020-minas-gerais-estabelece-diretrizes-para-a-prevencao-e-o-enfrentamento-da-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher-no-estado-por-meio-da-atuacao-das-equipes-de-saude-da-familia>. Acesso em: 04 maio 2020.

ONU – Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-a-experiencia-internacional-com-os-impactos-da-covid-19-na-educacao/amp/. Acesso em: 09 de abril de 2020

Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Mulher Disponível em: https://ouvidoria.mdh.gov.br/ Acesso em: 09 de abril de 2020

PL 1.054 2019 – Projeto de Lei – Dispõe sobre a comunicação pelos condomínios residenciais aos órgãos de segurança pública de ocorrência ou de indícios de violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente ou idoso, em seu interior. Disponível em:<https://www.almg.gov.br/atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/interna.html?a=2019&n=1054&t=PL&aba=js_tabVisao>. Acesso em: 04 maio 2020. PL 1.876 2020 – Projeto de Lei – Dispõe sobre o registro de violência doméstica por meio de delegacia virtual durante a pandemia do novo coronavírus – covid-19. Disponível em:<https://www.almg.gov.br/atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/interna.html?a=2020&n=1876&t=PL&aba=js_tabVisao>. Acesso em: 04 maio 2020.

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Ana Paula Lamego Balbino

Delegada de Polícia – PCMG (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Belo Horizonte / MG)

Docente na ACADEPOL (Academia de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais)

Pós Graduação, latu sensu, em Direito Público pelo IDP

Aperfeiçoamento no Mestrado Profissional Promoção da Saúde e Prevenção de Violência na Faculdade de Medicina – UFMG

Maria Aparecida Consentino Agostini

Juíza de Direito de Entrância Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Belo Horizonte / MG

Integra a COMSIV – Coordenadoria da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

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