O crime de injúria racial é imprescritível?

Escrito por Rodrigo Leite

Mestre em Direito Constitucional, Autor,

Assessor no TJRN e Conteudista do SupremoTV.

Uma das pautas axiológicas da República Federativa do Brasil é repudiar o terrorismo e o racismo nas relações internacionais (CR/88, art. 4º, VIII). Como concretização disso, o Constituinte Originário previu que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (art. 5º, XLII).

Para cumprir ou detalhar essa diretriz, foi editada a Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor e no seu art. 20 prevê que com pena de um a três anos de reclusão, as condutas de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

Por outro lado, na Parte Especial do Código Penal (Título I – Crimes contra a Pessoa – dentro do Capítulo V – crimes contra a honra), o legislador trouxe o art. 140, § 3º, do Código Penal, com redação atual dada pela Lei n. 10.741/2003, figura qualificada do delito injúria, denominada de injúria preconceituosa, quando o crime é praticado com a utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. A pena para esse delito é que reclusão de um a três anos e multa.

Cumpre destacar que o Supremo Tribunal Federal iniciou julgamento que definirá se esse delito do art. 140, § 3º, do CP no trecho que versa sobre a “injúria racial” é espécie do gênero de racismo e, como consequência, é imprescritível. Ou se existe autonomia delitiva entre o art. 140, § 3º, do CP (crime de injúria qualificada) e do art. 20 da Lei n. 7.716/1989 (crime de racismo), tal como hoje prevalece.

A injúria qualificada é afiançável, prescritível e de ação penal pública condicionada à representação, conforme prevê o art. 145, parágrafo único, do CP. Segundo Gamil Föppel El Hireche e Gabriel Dalla de Oliveira (Código Penal Comentado. São Paulo: Manole, 2020, p. 315) “cuida-se de crime contra pessoa certa e determinada, elegendo-se como meio para a ofensa uma característica de cor, raça, religião, etnia, etc.” O racismo, por sua vez, é crime de ação pública incondicionada, inafiançável e imprescritível.

Acerca do tema, a Corte Especial do STJ (analisando o preconceito de índole religiosa, mas cujo raciocínio é aplicável ao caso aqui descrito por envolver os mesmos artigos) já decidiu que a diferenciação entre os delitos do art. 20 da Lei n. 7.716/89 e do art. 140, § 3º, do CPC, reside no elemento volitivo do agente. Se a intenção for ofender número indeterminado de pessoas ou, ainda, traçar perfil depreciativo ou segregador, o crime será o do art. 20 da Lei 7.716/89. Contudo, se o objetivo for apenas atacar a honra de alguém, valendo-se, para tanto, de sua crença religiosa, no caso – meio intensificador da ofensa -, caracteriza-se nesse caso o delito o de injúria disciplinado no art. 140, § 3º, do Código Penal – ver APn 612/DF, Rel. Min. Castro Meira, Corte Especial, julgado em 17/10/2012, DJe 29/10/2012.

Nessa linha, Cezar Roberto Bittencourt (Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 562) ensina que “a denominada injúria racial, prevista pela Lei n. 9.459/97 (que acrescentou o § 3º ao art. 140 do CP), não se confunde com o crime de racismo previsto na Lei n. 7.716/89; embora o objeto de ambas as infrações sejam semelhantes, apresentam algumas diferenças marcantes.” Para ele, o crime de injúria racial ofende a honra e a dignidade de pessoa determinada, prescrevendo, in abstracto, em oito anos a partir da data do fato – ver art. 109, IV, CP.

Também Rogério Sanches Cunha (Manual de Direito Penal: volume único. Parte Especial. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 203) registra que a qualificadora do art. 140, § 3º, do Código Penal, “refere-se à injúria preconceituosa, não se confundindo com o delito de racismo previsto na Lei 7.716/89. Neste, pressupõe-se sempre uma espécie de segregação (marginalizar, pôr à margem de uma sociedade) em função da raça ou da cor. No caso do § 3º do art. 140, o crime é praticado através de xingamentos envolvendo a raça, cor, etnia, religião ou origem da vítima.” A segregação ou a intenção de segregar que o racismo pressupõe é real, ou seja, utilizada com o intuito de criar, por meio de ações concretas, efetivas divisão dos cidadãos em categorias baseadas em preconceito de raça, cor etc. Na injúria, de forma absolutamente diversa, a intenção é a ofensa moral, que, mesmo tendo como meio o abjeto preconceito de raça ou de cor, de nenhuma forma se equipara à conduta anterior, complementa ele.

Na mesma linha, Ricardo Andreucci (Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 286) registra que no que se refere à raça e à cor, é muito comum o equívoco na tipificação de fatos que consistiriam em injúria por preconceito, como crime de racismo. Porém, ofensa consistente em xingar a vítima, ressaltando­lhe a cor ou a raça, não pode ser considerada crime de racismo previsto pela Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, pois não implica ato de segregação, mas sim injúria por preconceito, também chamada de injúria racial, onde se ofende a dignidade ou o decoro da vítima.

Na mesma diretriz é a doutrina de Celso Delmanto, Roberto Delmanto e outros (Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 510) e Cleber Masson (Direito Penal: parte especial. Volume 2. São Paulo: Método, 2020, p. 190) quando diz que “quando fundada em elementos relativos à raça, a injúria qualificada não se confunde com o crime de racismo.”  Também para Jamil Chaim Alves (Manual de Direito Penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 850), a injúria qualificada não configura, tecnicamente, racismo, sendo infração afiançável e prescritível.

Cumpre registrar, porém, que o STJ, no emblemático AgRg no AREsp 686.965/DF, Rel. Ministro Ericson Maranho (Desembargador Convocado do TJ/SP), Sexta Turma, julgado em 18/08/2015, DJe 31/08/2015, na esteira da doutrina de Guilherme de Souza Nucci, entendeu que a injúria racial é “um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão.”, entendimento esse repetido no AgRg no AREsp 734.236/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 27/02/2018, DJe 08/03/2018.

Para definir o entendimento acerca do tema, como dito, o Supremo Tribunal Federal começou o julgamento do Habeas Corpus 154.248/DF, ação na qual se discute se o crime previsto no art. 140, § 3º, do CP, é equiparável ou espécie de racismo ou se o delito é distinto e, portanto, prescritível.

O Relator do processo, Min. Edson Fachin, considerou que a injúria racial é espécie do gênero racismo e, em razão dessa compreensão, considerou que esse delito também seria imprescritível.

O Min. Nunes Marques, por sua vez, considerou que as condutas dos crimes são diferentes e que a imprescritibilidade da injúria racial só pode ser implementada pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário. Para ele, “no crime de injúria, o bem jurídico protegido é a honra subjetiva, e a conduta ofensiva se dirige a ela. Já no crime de racismo, o bem jurídico tutelado é a dignidade da pessoa humana, que deve ser protegida independente de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” As condutas no crime de racismo, segundo Nunes Marques, “tratam de ações que, com fundamento ou finalidade discriminatórias prejudicam, ou visam prejudicar, pessoas pertencentes a um grupo étnico, racial ou religioso, ou de todo ele”. Para ele, “a gravidade do delito não pode servir para que o poder Judiciário amplie as hipóteses de imprescritibilidade pelo legislador e nem altere o prazo previsto na lei penal.” Assim, em síntese, o crime de injúria racial não se equipararia ao de racismo.

Entendo que a imprescritibilidade é uma exceção trazida no ordenamento. Assim, penso que não é possível interpretar a imprescritibilidade de forma extensiva. A Constituição prevê que é imprescritível o crime de racismo, delito de tutela mais ampla e supraindividual com ofensa generalizada direcionada indistintamente uma coletividade de pessoas (discriminação generalizada) com intenção de segregar indivíduos, em virtude de odiosa discriminação ou preconceito. Na injúria racial o BEM TUTELADO É A HONRA SUBJETIVA de pessoa(s) certa(s), individualizada(s), trata-se de delito que fere à honra por MEIO de ofensa preconceituosa à pessoa ou a pessoas determinada(s).

Como assinalam Gamil Föppel El Hireche e Gabriel Dalla Favera de Oliveira (2020, p. 421), “os bens jurídicos são, pois, diferentes. Se a ofensa for perpetrada contra a coletividade, com sujeito passivo indeterminado – modalidade de crime vago – haverá crime de racismo. Se, porém, a ofensa for contra determinada pessoa, específica, devidamente individualizada, e se escolher como meio para ofender um preconceito de raça, cor etnia etc., haverá crime de injúria preconceituosa.”

Apesar de serem – ambos – crimes odiosos, repugnantes, marcados pela falsa superioridade ou supremacia que ninguém possui, é preciso realizar essas distinções técnicas. A imprescritibilidade é exceção e foi atribuída pela Constituição ao racismo, não podendo ser estendida ao delito de injúria racial.

Entendo que não cabe ao Poder Judiciário mesclar tipos penais, tornar um crime espécie de outro sem autorização legal para tanto, nem se pode alargar imprescritibilidade quando a Constituição não dispôs, nem realizar interpretação derrogatória de certo delito para enxertá-lo em outro.  Os crimes debatidos acima, como dito, possuem alvos ou bem jurídicos diversos, não podendo ser igualados.

O Supremo Tribunal Federal retomará o julgamento do importante HC 154.248/SP, com o voto do Min. Alexandre de Moraes.

Em síntese até aqui:

Corrente 1: a injúria racial é espécie do crime de racismo, logo, ambos são imprescritíveis.

Min. Edson Fachin

Guilherme de Souza Nucci

STJ, Sexta Turma: AgRg no AREsp 686.965/DF, DJe 31/08/2015 e AgRg no AREsp 734.236/DF, DJe 08/03/2018.

Corrente 2: injúria racial e racismo são crimes distintos. O primeiro prescritível e o segundo imprescritível.

Min. Nunes Marques

Des. Gilson Barbosa (TJRN, Apelação n. 2017.017106-4).

Celso Delmanto e Roberto Delmanto

Cezar Roberto Bittencourt

Cleber Masson

Gamil Föppel El Hireche e Gabriel Dalla Favera de Oliveira

Jamil Chaim Alves

Rogério Sanches Cunha

Ricardo Andreucci

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